Postagens

Mostrando postagens de julho, 2023

Comentário sobre Tratados dos Ventos na Maré Cheia, de Cristiane Sebastião. Santos, SP: AG2, 2021.

Imagem
  Já falei para vocês desse livro que encontrei no ano passado, Tratados dos Ventos na Maré Cheia - um livro sobre a autodeterminação de uma mulher, seus processos e procedimentos para enfrentar ventos e marés, aquilo que não regulamos, não controlamos, não alcançamos, mas nos atinge em cheio. Então é assim que é uma Nereida! – pensei, quando vi a autora, chegando para o lançamento do seu livro na Circulares Livraria, em Brasília onde esteve apresentando uma oficina de escrita. Tivemos uma conversa ensolarada no evento, ampliei minha leitura de mundo. Fiquei encantada. Me atraem livros grandes, com ilustração envolvente, imagens em prosa e verso e um lugar para respirar. Cristiane Sebastião, garota valente, uma mulher apaixonada, com complexas conexões poéticas, descongela as palavras sem medo, pondera: o quanto uma mulher suporta ser invisível. Ela mergulha no que acontece quando se dá conta do que está causando que ela esqueça dela mesma. Ela descreve como devolve o que nunca lhe per

Andanças

Imagem
  Autêntico. Meu turismo favorito. Sem serviço de mecânica autorizada. Típico. No “auto-socorro” da beira de estrada tem sorvete caseiro. Sorte. Crianças gastando as pilhas de tempo em escadarias e bancos de cimento. Praça. Um palito de picolé para fazer as vezes de colherzinha do sorvete. Cidadezinha. Eu sentindo falta de um “Guia Michelin” de igrejas. Se tivesse um livro talvez me deixassem em paz. A caminho do mar. Esse não parecia bêbado, aparentava inofensivo e desarmado. Todo animadinho de papo, na minha frente. Nenhum lugar para fugir. Meus ouvidos navegaram no coroa de média estatura, magro e firme, cara de ondas plácidas, pele usada e tostada. Chapéu de feira, botas locais.  Abri meu campo de força, deixei entrar o desconhecido. O velhinho aportou pescando a minha pupila, que ancorou na dele quando mostrou que ele também não era dali. Sem cerimônia, abriu um parágrafo em que contou como chegou, pedalando, quarenta anos antes. Rapazote, ganhou a bicicleta e o mundo, indo de can

Passarin

  A família era pobre demais para se dar ao luxo de não ter que entrar na fila. Assim ela cresceu esperando o coletivo, esperando o atendimento médico, esperando abrirem as vagas na escola. Nessa esperaciência, ela desenvolveu a habilidade de contar tudo. Quantos homens, quantas mulheres, quantas crianças, quantos calçados, quantos pés coloridos pela poeira vermelha, quantas pedras no caminho. Ao longo da vida foi encontrando mais o que contar: quanta gente com o braço estendido, quantos ônibus sem parar, quantos carros parados na estrada, quantos tocos de giz na lixeira, quantas verrugas nos dedos dos meninos. Aos trinta anos enxergava mais detalhes, mais além, mais rápido. Diziam que ela tinha “olho de passarin”. Ela contava que sua alma também era de passarinho. Mas, isso ninguém via.

Glau

  - Sabia que minha MÃE grita?  Pedro jogou na roda de conversa da turma. Imediata atenção do Jardim 4. Glau saboreou o silêncio. Percebeu as faíscas dos olhares. Sentiu a respiração entrecortada pelas bocas abertas.   Podia ler os balõezinhos de pensamento em letras de imprensa maiúsculas. Numa projeção para dentro, estavam repassando suas vidas de modo acelerado e se dando conta de que não tinham registro vivo da mãe do Pedro sendo como as outras. Ela já estava lá, quando a porta se abria para a saída. Pegava a mochila e seguia de volta para o estacionamento. Paradas simpáticas no caminho. Não precisava chamar. Pedro era louco para colar na mãe. Já o pai – um cara que construía foguetes e satélites, que lutava kung-fu e tinha uma espada ninja de verdade, e que levava ele para ver dinossauros. Praticamente um herói da Marvel. Glau não tinha visto nem o pai nem a mãe hoje. Estava preparando o material das atividades do dia. As crianças, veteranas, acostumadas com os rituais de ch

PORRA,

  Porra Porra...porra, foi só o que deu para eu ouvir. Três. Não vi nada, não dava. Meio longe da vista, alcançou o ouvido. Um ouvido, só. O outro falhou. As testemunhas estão dando depoimentos. Os jornais estão cobrindo. Gritos – ouvi – seguidos de ação contundente – não vi – com fria emoção, imagina! O cara chega em casa e flagra a mulher ouvindo mensagem de tik tok, tira satisfação - que porraéessa – nada disso que você está pensando, porra – não tô pensando nada, porra, me dá essa merda – não dou! Seguido de ação contundente: o cara pega o taco de beisebol e quebra a cabeça dela! Babaca, bruto, idiota! A mulher tinha acabado de lavar toda a cozinha, louça, pia, fogão, chão, paredes, armários. Estilo americano, perfex e mr. músculo. O lixo estava separado, ensacado e recolhido, dia de orgânicos. A roupa tinha secado rápido e estava dobrada nos armários e gavetas cheirosas e limpinhas, sachês de manjericão. Banho tomado, cabelo preso, top de malha e legging de academia, meia e tênis

Manifesto

  Cartolina estendida no piso, Fernanda escreveu a primeira palavra da tarefa que era para ter sido entregue na semana passada. MANIFESTO. A greve geral de coletivos urbanos adiou agenda dos trabalhos em grupo da escola, mas não terminou o sufoco, tinham que escrever e colar no mural, depois fotografar e enviar pelas redes sociais. Mundo híbrido, arte analógica e digital, tudo ali simultâneo e sem tempo. Sérginho preferia escrever PROTESTO, mas não cumpriria o parâmetro curricular sobre gêneros textuais. A arte seria justamente transformar o protesto em um manifesto, a ser lido e digerido pela professora de Português, Comunicação e Expressão, ressaltou Paulo. Tinham combinado de fazer os melhores trabalhos para saírem ilesos da marcação cerrada que ela fazia desde o início do ano, ou antes, sem abrir mão das ideias de cada um. Guerra na Classe: Grupo de Estudantes de Diretoria X Tradicional Professora Mezzo-nazi. As estratégias de combate mútuo seguiam civilizadas e discretas, mas co