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Mostrando postagens de agosto, 2023

Mãe de bonecas

  Na pia, a pilha de louça para lavar ainda por vencer, quando sou chamada a mediar um conflito entre um marmanjo de seus entrados quarenta de idade e uma recém feita bravinha, com toda a razão dos seus quatro anos de vida. - Meu vô não quer me deixar vestir a roupa de Barbie Havaiana na Barbie Branca de Neve! Quando acabar a cozinha, vou ver o que nunca vi com as bonecas de trocar fraldas e dar papinha. Vou postar foto do flagrante no mural da família. Um homem que brinca é modelo para uma sociedade inteira. Esse que brinca de bonecas, então, merece vela acesa para a Barbie Milagreira. O que não faz uma boneca com peitos! Ponho até flor no altar, para todas as deusas. Na real, não tenho lembrança de brincar alguma vez com meu pai. Nenhuma brincadeira, nem de bonecas, nem de bola, nem tenho imagem dele sobre uma bicicleta. O que ele gostava era nos levar para passeios e visitas. Pedalinho, barco, trem. Aventuras de parques e praças, beira de rio e mato, com viagens curtas de carr

Habeas data

  A pergunta veio de chofre: - A gravidez foi planejada? - Por quem? O olhar do médico desatou-se da tela e me encontrou pela primeira vez. - Pelos pais. - Sem pais. Ouvi no suspiro dele os longos anos de exercício profissional. - Você é a mãe do bebê na sua barriga? - Claro. Outro suspiro, esse da alma. - O que faz de mim uma senhora. As mãos no teclado esperando a resposta. Eu, do outro lado da mesa, esperando a pergunta. - Então? - Então, o quê? - A gravidez foi planejada pela senhora? Mergulho na cena em que conto para minha mãe que quero ter um bebê igualzinho o meu vizinho de porta na vila. Desista! Bonito assim você não vai conseguir na vida! Ela riu, depois espalhou a anedota. Certeira. Nunca na vida encontrei alguém tão bacana. Quis também ter um filho fofinho igual ao irmão da minha vizinha nissei. Outra anedota contada pela minha mãe. Eles gostam de gênios na matemática, era seu dito motivacional, ou aprende matemática, ou nenhum japonês vai q

Querido diário,

  Oi, sumido!  Curtiu sua temporada de fundo de armário? Mamãe até que te cuidou bem, entre todos, o mais Tchans! Cinquentanos de caixas e caixas de quinquelhos prá tirar do mofo e do deusmelivre! Estou há dias nessa arqueologia. Encontrei as edições secretas de quando você era criança e gostava mais de figurinhas e desenhos, corte e cola e pinta. Páginas grudadas da nossa história. Na sequência, vi os erros. Os cedilhas, deslocados, mas na mais caprichada letrinha. Tuas páginas ainda têm o jasmim das tardes de caligrafia. Achei tua versão em saltos altos, ensaiando uma valsa - como se coubesse tanto luar. Te achei tão jovem, chei’de criatividade. Muita história eu tinha prá contar!   Lembro que percebi que eram histórias interessantes, no mesmo dia que te descobri nem tão secreto assim. A cena:   Mamãe - roupão amarelo, laranja e preto - enormes flores atoalhadas amarradas na cintura. A memória: O que parece maior, bobes prendendo os cabelos, ou o diário balançando aberto na mão del

Na Beira

  Prendeu o coque com um garfo, arregaçou as mangas e enfiou os braços na tina de cobre. Lavou a alma. Desde o parto não se sentia tão fria. Jogou a criança fora com a água da bacia. Suja. Era assim que se fazia naquele lugar.   Conferiu o tempo nos voos dos pássaros. Não havia mais horas. O pulso nu. Traçou uma lua na beira da poça. Cheia. Os astros logo se mostrarão. Volúveis. Tomou fôlego. Limpou o leite. Engoliu uma constelação. Arrepiou-se. Fez uma dança de folhas secas. A terra podre. Fétida. Algo passou pelo pensamento. Bem longe. Uma lembrança besta. Leve. Nem se deu amor. Nem pegou fruta no pé. Sentia-se chovendo para dentro. Fundo. Afogava o espírito. Solto. Olhava assim para o oriente. Meio torto. Suspeitava que seus dias de loucura caminhavam para lá.   Queria seguir. Vazia. As pernas não desenrolavam do umbigo. Cotoco. Recolheu os gravetos. Amarrou um nó na barra da saia e pulou a noite. Mal despontado o primeiro cume, segurou o garfo pelo cabo com força e arrancou-se dos