Sistema literário e sistema educacional: um pouco mais de Machado de Assis e Paulo Freire, para entender melhor a formação de leitores no Brasil

 

Somos leitoras, mediadoras de leitura, narradoras, estudantes, professoras, escritoras. A atividade intelectual de filósofos, artistas, pensadores,  nos interessa.  Consideramos o conhecimento e a leitura nosso direito. Para garantir esse direito, vamos chamar um advogado! Paulo Freire, advogado de formação e, antes de tudo, um filósofo humanista.

Ao falar de Paulo Freire para não pedagogas, preciso ressaltar que está implícito em toda sua obra que a descoberta do conhecimento não se dá apenas na escola, mas em todos os espaços e atividades da sociedade; trata-se de uma condição existencial. Para ele, somos todos mediadores de leitura quando lemos e nos dispomos a dialogar com os outros e outras para intervir na realidade com uma ação contra a “visão fatalista” do mundo. Porque ler é ler a palavra e ler o mundo, percorrer o mundo, desvendá-lo, compreender o seu movimento. É nesse sentido que a leitura é cultura, porque o ato de ler nos mobiliza pela compreensão da práxis humana – ou seja: o que pensamos e o que praticamos. Os círculos de cultura, propostos por Freire, onde a palavra é dita e escrita, são uma ação cultural para a libertação do oprimido do sistema econômico desumanizador, são a ousadia de transformar a indignação em esperança, com autonomia e educação para o exercício digno da cidadania. Essa ação cultural é sua proposta contra o que ele sintetiza na expressão “educação bancária” (bem notável no episódio de “Conto de escola” em versões de épocas e lugares diferentes), na qual o sistema todo funciona como depósito de saberes – o conceito comum de que a instituição escolar/autoridade deposita saberes em alunos/povo “vazios” – o que anula o que o sujeito traz de experiência existencial, de vivências e saberes relevantes e pertinentes, criadoras. Freire defende a existência de instituições que garantam o direito à leitura e à literatura, que ampliem a comunidade leitora (uma vez que ler não é ato isolado, é coletivo, como ação de conhecimento), com uma metodologia que privilegia a pesquisa e se transforma em ação, uma pesquisa-ação. Daí que é possível perceber a participação do leitor no sistema literário não como mero consumidor de palavras, mas como cidadão crítico e consciente capaz de entender e transformar a ordem social, econômica e política. Questão de justiça; questão de justiça social.

O que o pedagogo Freire propõe fazer para ampliar a comunidade leitora numa sociedade complexa e de tradição oral é a formação dos círculos de cultura/leitura para intervenções dialógicas, onde a transmissão do conhecimento é feita com escuta e voz entre os sujeitos e entre os sujeitos e objetos de conhecimento. Para Freire, para a construção de uma sociedade democrática, urge popularizar a cultura, libertar o povo dos traumas coloniais e descolonizar as mentes, transmitir/produzir a cultura valorizando a oralidade e tornando cotidiano o aprendizado da língua e da escrita, num processo universal, ao mesmo tempo rigoroso e imaginativo. Nessa concepção, nós, leitores, somos, sobretudo, produtores e não apenas receptores ou transmissores de conhecimento e de cultura. 

Para Freire, é responsabilidade ética de quem faz a mediação entre sujeitos e conhecimento a superação da antiga concepção de que um ensina e o outro aprende para alcançar a máxima de que quem aprende também ensina, aprendemos em comunidade, coletivamente. Só a partir dessa consciência crítica e dessa prática emancipadora, podemos construir uma sociedade na qual não existirão mais exploradores nem explorados, nem dominantes “doando” sua palavra opressora a dominados. Para ele, adquirir conhecimento/cultura é mais do que acumular uma quantidade de leitura, é um adentrar uma “leitura de mundo” a partir de uma escolha que fazemos se estamos dispostos a aceitar o outro, aprender com a história.

Machado de Assis, também grande intelectual brasileiro, não chega a elaborar uma teoria pedagógica da educação, claro. Porém, demonstra uma certa compreensão ético-crítico-política da educação no Brasil, dentro e fora da escola, como se pode observar nos seus textos de ficção. A obra de Machado porta uma “filosofia”, seja do autor, sejam filosofias narradas pelos personagens - por isso, aspas para “filosofia machadiana”.  Em ambos, Freire e Machado, busco inspiração para pensar e forças para enfrentar alguns desafios e problemas que encontro atualmente na educação do Brasil.

A arte de Machado opera com mediações e sua ficção revela verdades de um Brasil do século XIX que continua, com algumas alterações, nos dias de hoje. Das obras de Machado também emergem princípios educativos e propostas alternativas, além de uma crítica ácida à educação e à formação de público leitor no país – no geral, nas escolas, nos métodos de ensino, no comportamento de professores e estudantes, de pais e filhos, nos conteúdos ensinados/aprendidos, nas práticas e ideias da época sobre o conhecimento, a leitura, a ciência. Apreendemos sua denúncia de que se trata de um país de analfabetos e que a educação é feita para a elite exercer seu poder. [EXEMPLO dos textos apresentados].

Também captamos sua crítica à má interpretação que se fez do legado greco-romano que tem a retórica e a eloquência como caráter formativo. Em especial no “Conto de escola”, Machado desnuda a educação moral (base grega) pela vergonha, que ensina o que é corrupção e delação, por exemplo, em oposição à liberdade. Lemos um cenário, aí, de uma educação com fundamento em Aristóteles: preparação para obediência às normas, para a vida em sociedade com pirâmide social pré-determinada a ser mantida, sem questionar as relações de poder estabelecidas, no caso, especificamente entre quem ensina e quem aprende. A ironia de Machado flagra o quanto esse fundamento está fora do lugar na sociedade brasileira da época que ele descreve (se lermos bem, até hoje!).

Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado ousa fazer um ensaio prático de formação de leitores - sabendo que o leitor determina e influencia os rumos da literatura, faz uma “educação pela ficção” para qualificar a competência literária do leitor da época – maioria dita do tipo romântico-folhetinesco. Nesse “ensaio prático”, como estou chamando livremente, Machado cutuca, deixa irrequietos os leitores levando-os a fazer uma re-leitura e a manter-se na leitura ainda que tenha expectativas frustradas, por exemplo, como competências necessárias para aprimorar o senso crítico do leitor. O uso de reticências e o uso de interrogações também são técnicas que Machado utiliza para mostrar ao leitor que o autor sabe que ele está ali. Faz o leitor praticar o que ele considera ser relevante para ser um leitor crítico e competente.

Qual a realidade que a ficção de Machado atesta? Que propostas a obra dele veicula? Que passagens da memória coletiva ele ilustra nas suas histórias? Como ele demonstra o que se passa na realidade com seus personagens fictícios? Podemos tentar responder, por exemplo, lendo alguns extratos de Memórias póstumas de Brás Cubas. No capítulo “O menino é pai do homem”, o personagem reconhece a educação viciosa e incompleta que recebe de um pai que o adora e de uma mãe fraca, em um meio doméstico com “vulgaridade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído, frouxidão de vontade, domínio do capricho e o mais.”  No capítulo “Um salto”, ainda rememorando, o personagem nos faz lembrar o “Conto de escola” do mesmo autor, logo no primeiro parágrafo. Segue o retrato de uma escola em que o alfabeto, a prosódia, a sintaxe incutida no cérebro via palmatória, não eram o suficiente para incutir compreensão humana e evitar crueldades. “Que querias, tu, meu velho mestre de primeiras letras?” é uma das questões que o personagem provoca. Ilustra Machado, na fala do personagem, qual a escola tolerada na época: “lição de cor e compostura na aula, nada mais, nada menos do que quer a vida, que é Mestra das últimas letras…”.  “Bacharelo-me”, medíocre, superficial, petulante, certificado sem ciência, “alforriado” da obrigação de titular-se - livre e responsável pelo gozo da vida”. Aqui, uma demonstração de um sistema de educação vazia que nada transforma. O autor atesta uma educação desconectada da realidade, voltada para o “futuro”, que mantém uma elite na posição superior, com cargo e reputação.

Leio em Dom Casmurro, o personagem, famoso, narrando, com sua história, um pouco da história do país e dos projetos de educação da sociedade. Capítulo XI - “A promessa”, Um filho com carreira de padre. Disponíveis os educandários e seminários, sólidos na sociedade; vocação para quê? Mas, não havendo vocação, “um jovem pode muito bem estudar as letras humanas, que também são úteis e honradas”. -  Visão pragmática. Capítulo XXXIX - “A vocação” Observa-se na situação do capítulo que, numa sociedade em que os títulos são relevantes, não basta ser letrado, a carreira de padre também oferece notoriedade; aprende-se a vocação ou é um chamado interno? Até que ponto é possível educar alguém para ser alguém?  Capítulo LIV - “Panegírico da Santa Mônica”- Uma vez tendo passado pelo processo educacional, o que é feito dos seminaristas? Padres ou não padres? que lugar ocupam na sociedade, como mediadores do conhecimento - do entendimento da palavra? Copiosos [COPISTAS?], talentosos, oradores, escritores; obcecados com a obra prima, improdutivos? Qual leitor resulta de um sistema de educação que anula a autenticidade e a expressividade individual?

Em tempos diferentes, com métodos diferentes, algumas possíveis discordâncias, a vida e a obra de  Paulo Freire e a de Machado de Assis, me parece, têm pontos em comum, no que diz respeito às concepções e alguns valores: a valorização do leitor como portador de saberes e como participante ativo da leitura e da escrita; o respeito ao povo como criador de linguagem e conhecedor da língua; a afirmação da educação como caminho para superar problemas sociais do país; a concepção da vida humana como inconclusa e como tarefa para o ser humano; o fundamento ético do conhecimento; o princípio da cultura como condição existencial; e a afirmação do papel da ironia - essa desconfiança risonha e problematizadora - na descoberta do conhecimento.

O que fica é que sabemos do impacto efetivo dessas “filosofias” veiculadas pelos dois mestres, Machado e Freire, nos sistemas literário e educacional brasileiro. Seria o bastante para conscientizar leitores de seu lugar decisivo nesses sistemas?

Referências:

FREIRE, Paulo e FAUNDEZ, Antonio. Por uma pedagogia da pergunta. 7 ed. São Paulo: Paz e Terra. 2011.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 45 ed. São Paulo: Paz e Terra, 20

FREIRE, Paulo. Ação Cultural para liberdade e outros escritos. 14 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.

GIMENES, Alessandra M. M., RESENDE, Neide L. A educação e a escola: princípios de formação em três contos de Machado de Assis. Ver. Machado de Assis em Linha. Vol.9, nº18, São Paulo. May/Aug 2016.

 s/autor -  O delírio de Brás Cubas: síntese do pensamento filosófico machadiano. In: Machado de Assis em linha. Ano 3, nº6, dez 2010.  

http://machadodeassis.net/reista/numero06/rev_num06_artigo02.pdf

KOHAN, Walter. Paulo Freire, mais do que nunca: uma biografia filosófica. Belo Horizonte: Vestígio, 2019.

 

 

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