DEFERÊNCIAS

 

O som dos livros pousando na mesa ainda ecoam no ouvido de Thereza. Ela sente o vácuo do movimento da professora Rosiene se virando do quadro negro para curvar-se sobre a pilha. Lábios pintados de beterraba, olhos prontos.

- Diga, Thereza Cristina Trigo dos Guimarães d’Albuquerque, em que posso te ajudar.

O tom doce, a voz meio rouca e o jeito de dizer as coisas sorrindo que Thereza amava desde a sexta série eram encorajadores.

- sabe o que a gente descobriu?  

Naquele momento Thereza ainda não conhecia os desafios que Rosiene enfrentava na vida em cidade do interior. Soube anos mais tarde, quando leu em seus contos, novelas autobiográficas e entrevistas publicadas. Guardou tudo autografado, com carinho.

Thereza rememora a cena como se fosse hoje: Rosiene lendo as capas dos livros um a um, para em seguida abrir as primeiras páginas, conferir editora, ano de edição, dedicatórias e bibliografias, referências, tentando entender o enigma: O que teriam em comum aqueles clássicos de literatura misturados com os de ciências?

- percebo que a  senhorita anda lendo bastante.

- Fomos na biblioteca.

- Tem bastante leitura interessante aí. Estou curiosa para ver o que te chamou atenção desta vez.

- sabia que nenhum desses livros foi escrito por alguém sozinho?

- imagino.

-  Ninguém escreve bem sozinho.

- bem notado! E, isso quer dizer...?

_ Ppor que aqui no educandário nós temos que escrever sozinhos?

Era um hábito que Thereza lembrava da professora, arcar as sobrancelhas e virar levemente a cabeça como sinal de interesse profundo no assunto.

-  Vocês estão escrevendo romances?  

Outro hábito memorável, as pausas dramáticas da professora, com a cara mais inocente do mundo.

- Eu pedi apenas uma redação como tarefa para casa.

- mas, a gente queria escrever juntos.

- - Huuum, A gente...

Rosiene sabia de quem se tratava, a “duplinha” amada dos professores do Educandário Professora Maria da Glória Queiroz de Vasconcellos. Nos conselhos de classe, eram destaque para os escolanovistas no desafio de educar a modernidade.

- O que vocês sugerem?

- Queremos escrever juntos, eu e o Bernardo.

- suspeitei. Então, vamos organizar também um jornal?

- pode ser, também.

-  Juntem seus grupos. Trabalhem com quem quiser. Vamos discutir uma pauta. Escrevam bastante. Mas, lembrem-se de uma coisa importante...

Aquela famosa pausa de suspense para Rosiene olhar em volta e sentir a atenção da turma.

- Preparem-se, vocês terão provas no colégio, assim como na vida, para enfrentar sozinhos. Thereza não estava preparada para a prova que a vida cobrava agora, a cegueira súbita. O assombro da escuridão que se fez de um segundo ao outro.  Quase cinquenta anos de exercício profissional, jornalista, escritora, roteirista de novela, poeta, editora, curadora, crítica literária, mas, bem na hora em que a filha estava com sua primeira publicação de autoria própria para sair – deslocamento de retina!

- Você não está sozinha, Thê. Dizia a mão do mesmo Bernardo que estava lá quando Rosiene os incentivou a fazer o jornal, o aluno preferido.. O homem que trazia a temperança para sua vida. O pai de sua filha.

- Tenho medo de não caber mais no mundo, meu querido.

- O mundo a gente inventa, mu amor.  Vamos inventar uma versão prudente de nós e cuidar para você ficar quietinha um tempo, sem mexer a cabeça.

- Só por fora, o doutor liberou para atividade mental.

- Isso, linda, hora de olhar para dentro.

Por isso que Thereza está estirada, na beira da piscina, assistindo o filme que projeta no interior da pestana. Não enxerga, mas vê a pilha de jornais do dia no chão, mais uma meia dúzia de livros sobre a cadeira, do lado de *B*.  Sem poder se mexer, Thereza vasculha a memória. Tenta se lembrar de tudo em volta, os objetos aparecem flutuando na sombra.

 A falta da visão parece que aguçou a sensibilidade da audição. Ela acompanha a respiração assobiada de *B*. ouve os passarinhos, a água batendo na borda, os barulhos do vizinho. Thereza tenta dar uma cor e uma forma para cada som. Inútil, seu pensamento está acelerado e em tudo ao mesmo tempo.

- Onde estão as crianças?

- As nossas, sinto dizer, entradas nos trinta, minha querida.

- Pois, diga para esses marmanjões que tem bolo de laranja com calda de chocolate e mil folhas de pistache, quero ver quem cresceu.

Em dois tempos estavam lá, lambendo as pontas dos dedos, sentados em almofadas no chão, espalhados na sala, ao alcance dos ouvidos de Thereza. Uma filha e seu Conselho de Gênios, servidos de amendoim, frutas, sucos, bolo e sorvetes – Thereza sabe, por que sempre foi assim. Mesa posta, gente em volta, entra e sai, barulho e bafafá.

- Estou lembrando de quando eram pequenos, Milla e Gael.

- Lembro da canseira que era.

- Engraçado, não lembro da canseira. Lembro de me divertir. As melhores horas que vivi. Da cidade do interior para a capital, os amigos com bebês pequenos eram um tudo!

- Era muito difícil, sei, mas a gente se virava, cada um ajudando o outro, emprestava, dava de presente.

- Depois que os pais do Gabriel resolveram voltar e ele ficou, era rapazinho, nervoso, se controlando, sendo valente. Eu me emociono de novo.

- Lembre, não pode chorar! Proibido sentir. Te trago gelo e limão para você pôr no seu coração!

- Adoro seu humor. Me conte uma anedota boa.

- Vamos ao capítulo 1 na biografia da Milla: Quando seu pai descobriu que ela era igual à mãe.  Gabriel vinha passar as tardes em que a mãe dele dava aulas. Eu ficava estudando, eles brincando no chão. Você fazendo reportagem no Xingu, não viu nossa filha ter seu primeiro ataque de soluços. Ga...

- Peraíê, minha vista está em pausa, mas o meu cérebro está funcionando sim, senhor! Se foi quando eu estava lá, não foi o primeiro, ô paiê! Conta essa história direito!.

- Tem razão, eu confundi a história, foi Gabriel que teve um ataque de soluços. Ela disse espantada: - O que é isso? Ele disse: - É que eu tô luçando! Ela respondeu brava: - Não é luçando que fala! Ele, debochado: - Então, como é que fala? Ela, cruzando os braços, de queixo erguido: - É Si luçando!

- Posso rir? Ouço essa história milhares de vezes, e acho bom. Você conta lindamente. Tantos anos já esses dois leõezinhos se arranhando no ninho.

Gabriel – Biel para íntimos, Gabs – pra galera, amigo gênio, escritor, teatrólogo, dramaturgo, divertido, agilizado, obcecado, perfeccionista -  TUDO! Assumiu a preferência e a precedência de amigo que tem autoridade de chamar de baleia cabeluda, cotonete de orelhão, mortadela mal cortada, pois é quem está lá nas alegrias e nas mancadas, nos porres e nas ressacadas. Era quem acompanhava Milla nas aventuras literárias. Precoce, gramático. Estavam na revisão final do livro. Thereza folgava em saber, gostava dessa dupla brilhante.

Recente tinham trazido amigos novos, adquiridos em estantes de sebos e cafés da cidade.  Thereza reconhecia a voz mansa e terna de Thalysson. Sempre ele na mediação no exercício de arranhaduras  amorosas entre Gabs e Milla  - que Thally chama de Lyudi, por conta da lista de presença sem intimidade do curso de espanhol. Fluente e imensamente divertido em várias línguas.

Se alguém perguntasse: - Sabe como se fala tal coisa em grego?

Thally respondia:  - Só por escrito.

Thereza achava que Thally ria um riso de purpurina. Diferente de Hegón, um cara sério e que nunca fala alto nem baixo demais.  Tão calado que Thereza tinha dificuldade de o localizar no ambiente. Quando cabe, ele insere um comentário sobre algum livro que leu quando carimbava todos os livros da biblioteca pública com tanta rapidez que chegou a ser chamado para verificarem se ele lia mesmo ou só levava para casa. Lia os que gostava, tinha método e memória – era a reencarnação de um daqueles alunos de Platão[VN1]  que ficavam deitados sob as estrelas imaginando um sistema global de armazenamento e acesso à todo o conhecimento, como sistema celeste – guardar nas nuvens e colher nas chuvas. Um cara do século 21, mantém blog e tem zilhões de acesso em um app que disponibiliza modelos template de dedicatórias e sugestões de texto para autógrafos.

- Escolheu a sua? Vai ter agradecimentos?

Milla pensa sempre no assunto. Queria seguir a tradição brasileira de nem dedicar, nem agradecer, só publicar. Pensava que a tradição americana de incluir o reconhecimento aos colabores: a bibliotecária, a mãe, o vizinho, os colegas de bar etc, acabava sempre esquecendo a faxineira. Pouco justo. Muito brega.

- Vai fazer dedicatória, pai, mãe...amigues?

- Pra começar uma guerra intergaláctica?

- Faz que nem Rita Lee: “dedico este livro aos animais que tive, tenho e ainda vou ter”.

- Mas, se ela já fez isso, por que deveras eu?

- Veja Marcel Proust, que galante:  

À Senhora Princesa Alexandre de Carman-Chimay, cujas Notes sur Florence teriam deliciado Ruskin, dedico respeitosamente, como uma homenagem, estas páginas que recolhi porque elas lhe agradaram.

 - Quem é Ruskin?

- Um bobo, desconhecido. Igual o tal do Jean Grenier, do Albert Camus. Só ele sabe quem é.

- Tem que explicar, pelo menos.

- Julián Fuks não explica, mas deixa a gente com um a-há. “Ao Emi, muito mais que o irmão possível”.

- a-há!

- Nesse quesito Rosa Montero é mestra: “Para Martina, que es y no es. Y que, no siendo, me ha enseñado mucho.”

- Eu sonho em fazer parte de uma lista de agradecimentos de algum autor consagrado “Ao Hegón, pelas sessões de psicanálise que salvaram minha vida.”

- Sério? Vou escrever: “ao dedicadíssimo e gostoso psi, pelas sessões que eram o que não foram.”

- Vou dedicar o livro a mim mesma: “por que eu escrevo para quem mais gosto”.

A conversa deixa Thereza um pouco apreensiva. Ela mesma, voraz leitora, com uma coleção enorme de livros, muito tempo se recusando a ler do tablet, por que “livro do kindle não é autografado” – vários autores amigos, visitas, frequentadores da casa perto do aeroporto, gente de cultura, de esquerda. Se pergunta quem ela lerá pela primeira vez de novo.

- Quer falar umas palavras?

- O que você quiser, sou todo seu, delícia.

- As complicadas.

- Complicadas de pronunciar ou digerir?

Thereza agradeceu na alma esse homem, fiel por natureza, capaz de prolongar seu prazer por mais sete minutos de conversa. Sente seu amor desde o dedão do pé no corpo todo - sente todas as células abraçando esse homem com as pernas e renovando o tesão quando ele fala palavras, pelas ideias, que fazia com que ela se sentisse dedilhada em todos os seus côncavos.  

Thereza resolve que vai deixar mais uma escritura antes de sair da zona de conforto. Vai escrever a história na primeira pessoa.  Com os olhos cerrados, enxerga um novo nascer do sol. Decide que seu próximo livro se chamará “Aurora”.    



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